O Haiti é ou não é aqui? A Lei de Cotas e a inclusão étnico-racial na UFSC

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Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos
Dando porrada na nuca de malandros pretos
De ladrões mulatos e outros quase brancos
Tratados como pretos
Só pra mostrar aos outros quase pretos
(E são quase todos pretos)
E aos quase brancos pobres como pretos
Como é que pretos, pobres e mulatos
E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados

Caetano Veloso, Haiti

Não vai na conversa dela
Essa mulher é espeto
Na frente dos outros me chama esse nego
E na intimidade, meu preto

Nei Lopes, Não vai na conversa dela

 

Na última reunião do Conselho Universitário da UFSC, em 13/09/2012, foi aprovado o Edital do Vestibular de 2013 referente a 70% das vagas de cada curso de graduação, junto com 10 vagas suplementares para indígenas (conforme a Resolução Normativa 022/CUn/2012). Ficamos com o desafio de definir como serão destinados os 30% restantes das vagas referentes ao Programa de Ações Afirmativas, em adequação à Lei de Cotas (Lei 12.711 de 29/08/2012).

A Comissão de Ação Afirmativa propõe que a adequação do PAA à Lei de Cotas se dê reservando 20% das vagas por curso para oriundos de escola pública, seguindo a obrigatoriedade de seguir a Lei de Cotas em somente 12,5%, ou seja, reservando 6,25% pontos percentuais desses 20% para candidatos de baixa renda (com renda familiar per capita de até um salário-mínimo e meio), e reservando 0,4%, 1,5% e 0,075% para auto-declarados pretos, pardos e indígenas. Além disso, permaneceria a reserva de 10% para negros, preferencialmente para oriundos do ensino médio público. Sobre essa reserva, como sobre as vagas suplementares para indígenas, caberia validar ou não as auto-declarações dos candidatos.

Ao tentar adequar à Lei de Cotas a experiência consolidada pelo Programa de Ações Afirmativas da UFSC desde 2008, colocamo-nos na incômoda tarefa de utilizar as categorias do  IBGE (“candidatos auto-declarados pretos, pardos e indígenas”) em conjunto com as categorias de “negros” e “pertencentes a povos indígenas do território nacional e transfronteiriços”, segmentos estes que temos procurado incluir no sistema universitário. Além disso, a lei fala em auto-declaração e o PAA em verificação da auto-declaração de negros e pertencentes a povos indígenas.

Talvez fosse mais simples tornar os 30% de vagas do PAA em 30% seguindo a lei de cotas, reservando 10% para negros (2% para pretos e 8% para pardos, conforme proporção da população de SC). Porém, elas seriam destinadas somente a pretos e pardos oriundos do ensino médio público, portanto haveria uma redução do percentual de negros. Outra conseqüência é que não seria possível deixar de validar a auto-declaração de pretos ou pardos, como ocorre hoje. A lei diz que são auto-declarados, portanto, somente um processo administrativo poderia cancelar a matrícula dessas pessoas.

A Resolução Normativa 008/CUn/2007 que instituiu o Programa de Ações Afirmativas da UFSC (PAA/UFSC) por 5 anos e foi reeditada em junho pela Resolução Normativa 022/CUn/2012 por novos 5 anos define de forma clara os termos “negros” e “indígenas”, de acordo com demandas dos movimentos sociais que visam a efetiva inclusão destes segmentos no Ensino Superior e com o que estabeleceu o parecer do Ministro Ricardo Lewandowski na votação unânime pela constitucionalidade das cotas raciais.

Prevê a reserva de 10% de vagas para candidatos “autodeclarados negros” que “deverão possuir fenótipos que os caracterizem na sociedade como pertencentes ao grupo racial negro”. Essas vagas atendem prioritariamente candidatos de escolas públicas, mas, não sendo preenchidas, podem ser utilizadas por candidatos com outro percurso escolar. Nos últimos 5 anos, cerca de 40% dessas vagas foram utilizadas por candidatos negros com outro percurso escolar. Antes do PAA, de 2004 a 2007 a média de negros na UFSC era 8,5% e após o PAA (2008-2012) passou para 13,5%. Cerca de 3% era de negros de outro percurso escolar que entraram pelas cotas para negros. Parar de contemplar esse segmento significa retroceder para longe da igualdade racial, sabendo que em SC há 15,4% de negros.

O PAA/UFSC estipula que a auto-declaração deve ser validada por uma comissão composta por representantes da UFSC e do movimento negro, que observa se o candidato corresponde ao perfil do público alvo dessa ação afirmativa. A experiência dos últimos 5 anos tem demonstrado que cerca de 5 a 10% dos candidatos auto-declarados “negros” não corresponde a esse perfil, incluindo pessoas com fenótipos distintos, mas que se consideram, por algum motivo, pertencente a esse segmento.

Em relação aos indígenas, o PAA/UFSC destina para candidatos que “pertençam aos povos indígenas residentes no território nacional e transfronteiriços” 10 vagas suplementares no vestibular de 2013, 13 no vestibular de 2014, 16 no vestibular de 2015, 19 no vestibular de 2016 e 22 no vestibular de 2017. Nos últimos 5 anos, somente 10 vagas foram preenchidas, dentre as 35 oferecidas. Dentre os candidatos, observa-se que alguns frequentaram escolas particulares ou de missões religiosas na condição de bolsistas. Há uma preferência pelos cursos de Medicina e Direito e, por isso, busca-se garantir a possibilidade de abrir até 3 vagas por curso.

O PAA/UFSC também estipula que a auto-declaração deverá ser validada por uma comissão, mas, nesse caso, o que está em questão não é o fenótipo ou a ascendência indígena, mas o pertencimento a um povo, que tem sido demonstrado a partir de correspondência de autoridades indígenas ou da FUNAI. Da mesma forma, dois candidatos aprovados para essas vagas suplementares não conseguiram comprovar seu pertencimento a um povo indígena.

A efetiva inclusão de candidatos pertencentes a povos indígenas depende de alguns fatores que o PAA/UFSC ainda não conseguiu atender, como a divulgação nas aldeias, o vestibular específico para indígenas e a garantia de condições de moradia e financiamento dos estudos para os candidatos aprovados. A experiência bem sucedida da Licenciatura Intercultural dos Povos Indígenas do Sul da Mata Atlântica, em curso na UFSC desde 2011, mostra que o atendimento dessas condições pode gerar bons resultados, como a inclusão de mais de 100 estudantes Guarani, Xokleng e Kaingang na Universidade.

Com essa experiência consolidada, vemos com preocupação a ambiguidade da Lei de Cotas na definição do público alvo como “autodeclarados pretos, pardos e indígenas” e a exclusão de candidatos que não fizeram o ensino médio em escolas públicas, tanto negros como indígenas.

Sabemos que a discriminação racial e étnica não opera somente sobre aqueles que cursam ensino público e que excluir os negros e indígenas de outro percurso escolar é nos afastarmos da igualdade étnico-racial. A discriminação desses setores não é somente econômica, mas de índole racista e o combate a ela deve levar isso em conta.

Considerando que boa parte dos atuais estudantes que ingressaram nas vagas destinadas a “negros” são oriundos de outro percurso escolar; que, invariavelmente, as auto-declarações não validadas por ambas as comissões eram referentes a candidatos buscando o ingresso nos cursos mais concorridos da UFSC; fica claro que a reserva de vagas que a UFSC tem destinada a “negros” não pode corresponder mecanicamente ao recorte de “autodeclarados pretos e pardos” previsto na Lei de Cotas. Também fica clara a necessidade de algum mecanismo que permita a validação dos candidatos “auto-declarados indígenas”.

Sabemos que as categorias “preto”, “pardo”, “negro, “indígena”, são socialmente definidas e operam de forma circunstancial, como bem traduzem as letras de Caetano Veloso e Nei Lopes na epígrafe. Mas se tratarmos a adequação da lei de cotas como simples exercício de tradução retórica, estaremos nos omitindo frente às experiências concretas de exclusão de certos segmentos sociais, que já vinham encontrando oportunidades de acesso ao Ensino Superior na UFSC .

Texto de: Profs. Antonella M. I. Tassinari e Marcelo H. R. Tragtenberg

 

 

A nova Lei de Cotas: um problema para a inclusão de negros e indígenas na UFSC

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O que pode parecer uma vitória para a inclusão de negros e indígenas no Ensino Superior – a nova Lei de Cotas sancionada pela Presidente Dilma em 29/08, no caso da UFSC, poderá representar um retrocesso se não houver cuidado com a manutenção de alguns princípios do Programa de Ações Afirmativas em vigor desde 2008.

A Lei 12.711 de 29/08/2012 prevê a reserva de metade das vagas de Universidades Federais para candidatos oriundos do Ensino Médio em escolas públicas. Desta “metade do bolo”, será recortada outra metade (ou seja, “um quarto do bolo”) para candidatos de famílias com renda igual ou menor que 1,5 salário-mínimo per capita. Também da primeira “metade do bolo” será recortada uma fatia para candidatos “autodeclarados pretos, pardos e indígenas, em proporção no mínimo igual à de pretos, pardos e indígenas na população da unidade da Federação onde está instalada a instituição, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)”.

A proporção de indígenas no último censo do IBGE (2010) no estado de Santa Catarina é de 0,26% da população. Isso implicaria numa “fatia” de 7 vagas na UFSC para qualquer pessoa que se autodeclarar “indígena”. Além disso, essa “fatia” só pode ser usada por candidatos que cursaram o Ensino Médio público e,  metade deve ser para candidatos com renda familiar igual ou menor que 1,5 salário-mínimo per capita.

No último censo do IBGE (2010) a proporção de “pretos” é de 2,94% e de “pardos” é de 12,41% da população do Estado de Santa Catarina. De acordo com a Lei de Cotas, isso representaria uma “fatia” de apenas 8% das vagas da UFSC, unicamente destinada a candidatos que fizeram Ensino Médio público.

No Brasil e, mais especificamente, em Santa Catarina, há um número consideravelmente alto de pessoas que podem se autodeclarar “pardos” ou “indígenas” e, assim, se beneficiar da reserva de vagas previstas na nova lei, sem corresponderem aos segmentos “negros” e “pertencentes a um povo indígena” que a UFSC vem tentando incluir em seu Programa de Ações Afirmativas desde 2008.

A Resolução Normativa 008/CUn/2007 que instituiu o Programa de Ações Afirmativas da UFSC (PAA/UFSC) por 5 anos e foi reeditada em junho pela Resolução Normativa 022/CUn/2012 por novos 5 anos define de forma clara os segmentos “negros” e “indígenas”, de acordo com demandas dos movimentos sociais que visam a efetiva inclusão destes segmentos no Ensino Superior.

Prevê a reserva de 10% de vagas para candidatos “autodeclarados negros” que “deverão possuir fenótipos que os caracterizem na sociedade como pertencentes ao grupo racial negro”. A resolução dá prioridade a candidatos que cursaram escola pública, mas também tem atendido candidatos com outro percurso escolar.

Em relação aos indígenas, o PAA/UFSC destina para candidatos que “pertençam aos povos indígenas residentes no território nacional e transfronteiriços” 10 vagas suplementares no vestibular de 2013, 13 no vestibular de 2014, 16 no vestibular de 2015, 19 no vestibular de 2016 e 22 no vestibular de 2017. São oferecidas, no máximo, 3 destas vagas suplementares por curso.

Há, portanto, nas Resoluções da UFSC, um cuidado para garantir que a reserva de vagas para negros e as vagas suplementares para indígenas seja utilizada, respectivamente, por pessoas com o “fenótipo caracterizado como negro” ou por pessoas “pertencentes a um povo indígena”. Essa garantia não está prevista na nova Lei de Cotas que apenas recorta uma fatia do bolo para “autodeclarados pretos, pardos e indígenas”.

Por isso, defendemos a manutenção das vagas suplementares para indígenas, conforme previsto na Resolução Normativa 022/CUn/2012, bem como a necessidade de garantir a reserva de vagas para o segmento “negro”, de acordo com o que já foi conquistado pelo PAA/UFSC.

Essa adequação será realizada na próxima semana pelo CUn. VAMOS FICAR DE OLHO!!!

Programa de ações afirmativas da UFSC é aprovado por novos 5 anos

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Em reunião do Conselho Universitário realizada hoje, a renovação do Programa de Ações Afirmativas foi aprovada por unanimidade. Se a aprovação foi uma vitória para a Universidade como um todo, para os indígenas, a notícia ainda é melhor.

As vagas suplementares para indígenas foram ampliadas: das 35 vagas disponibilizadas no quinquênio de 2008 a 2012, foram aprovadas 80 vagas para os próximos 5 anos, assim divididas: 10 em 2013, 13 em 2014, 16 em 2015, 19 em 2016 e 22 em 2017.

O número máximo de vagas disponibilizado por curso foi também ampliado para 3 vagas por curso.

Agora vamos buscar preencher essas vagas!

foto de José Nilton de Almeidafoto José Nilton de Almeida